Frase para um cartum

Aquela cabeça ali

já esteve cheia de sonhos

Hoje, mal cabem

algumas senhas

Tempo normal

 Tempo normal

Sem chuva

Depende do lugar.

Tempo normal

é chuva toda hora.

Tempo normal:

noventa minutos.

Mas gol nos acréscimos

também é normal.

Quem está no clima 

da vida 

quer mais é prorrogação

Impertinente

Eu pertenço a algumas 

palavras 

a outras sou reticente

Nenhuma me 

pertence

Algumas frases 

se apresentam,

mas são impertinentes.

É quando escuto o 

silêncio dizendo:

- fique tranquilo,

estou presente

Em trânsito

Votou em trânsito?

Votou em transe.

Parou no tráfego;

e o semáforo dizia:

mantenha o seu processo

em trâmite.

Proteja-se no trânsito,

liberte-se do transe.

Transe.

Esperar, esperar

Esperar, esperar

Era o erro

Era o acerto

A ilusão

de que quem estava longe

vinha para perto

Esperar eternamente

o que nunca chegava

Mas esperar era

o que sabia fazer

enquanto respirava 

Desplantio

Uma semente

que se jogou

e se abriu no jardim

desabrochou,

e logo floresceu em mim.

De repente, muda

o tempo verbal,

a semente agora é muda

é já é flor

e de novo mudou

sumiu de mim

e deixou o jardim

Haikai do passarinho operário

No bico, matinho

O sonho alto na asa

em breve, a casa

Construção civil

De galho em galho,

viagens rápidas 

de ida e volta

O passarinho traz o

sonho na asa;

e no bico,

um fiapo para o ninho,

um tijolo da nova casa.

Gatilho da perspectiva

A manhã do domingo se vestiu de rima fácil

e se apresentou para o menino poeta:

uma brisa atingiu seu rosto,

feito bala perdida;

mas tão leve, simples e direta,

que ele decidiu sentir 

o gosto da vida,

de bicicleta.

Vinte e três

Todo ano

tem setembro

que tem um dia 27.

Todo ano

neste dia

lembro poemas

antigos

que traduzem novos

rumos

Busco rimas

difíceis

para explicar

o riso fácil

que há 23

anos,

vem

desde o dia

que você veio

Junto fotos

de abraços

guardo registro

de poses

que remontam

seu percurso

e suas fases.

Mil imagens

compõem a riqueza

da sua existência

e vêm povoar-me a memória,

meus espelhos,

vêm iluminar meu trabalho

e justificar meus sorrisos.

Sem dor

Fisicamente, o soco não doeu

Fisicamente, não doeu

Fisicamente, não

Fisicamente

Lugares de árvore

Uma árvore

no meio da mata

vive plena

onde a vida

se retroalimenta,

vive e viabiliza

o viver  

Árvore no morro

encharca a terra,

que prenha,

vê a água nascer

e para o rio 

escorrer

Árvore 

na beira do rio,

lado a lado 

com o rio,

não deixa o rio

morrer

E salve a árvore na rua,

deixe o verde florescer, 

deixe os galhos 

pro passarinho sobreviver,

deixe a árvore na sua,

com a sombra e o vento

que sempre vão nos socorrer

O sono dos justos?

Morto de cansado,

mas pressionado pela noite viva,

descobriu na madrugada

que cada um paga o preço

pelos valores que cultiva

Memória do sorriso

Na memória do meu sorriso,

moram casas,

pessoas,

choros presos

e bichos soltos

Nas ruas por eu onde 

eu ria,

cresciam plantas,

meninos brincavam

e passavam sonhos

que eu, sem estar pronto,

seguia.

Na casa do meu sorriso,

almoço e janta,

plantas no telhado

estrelas no piso

e alguma lembrança 

do meu dente siso 

 

Mudança de plano

Tentou cortar o mal

pela raiz; 

não deu

foi plantar semente

do bem que sempre quis; 

choveu

Leitura labial

- Pare de tentar ler

 o meu sorriso

É nos olhos 

que a gente vê tudo

-  Mas seu olhar 

não falou mais nada, 

ficou mudo.

- É assim mesmo.

Já olhei

em alguns olhos

e vi o mundo;

noutras vezes,

olhei no fundo

de outros olhos;

e sim, eu estava surdo.

 

Bafo de astros

Um clarão de luz 

bem no meio 

do seu sorriso.

Umas vezes sol

noutras vezes lua

no céu da sua boca acesa.

Meses dançantes

O tempo abre espaços

É por isso que 

há um fevereiro

no meu setembro

São muitos risos

e abraços

- é o que eu lembro

E é no maio

de qualquer mês,

que as flores

num canto

ou no campo

me fazem pensar:

E o ano em si?

Abril.

Respondeu

Março,

que quando fecha

o tempo 

tem águas,

onde afoga o verão

Mas nas outras 

datas, cabe até 

outra estação.

Desembarca o Seu 

Julho,

com cara de quem

nem viu o irmão passar

Mas junho é mesmo 

assim:

frio em quase todo lugar

Outros outubros

abrem caminhos

pra novas chuvas

Há novembros que 

demoram pra vir;

tanto quanto os dezembros

Mas esses, ao chegar,

chegam chegando,

chovendo, com pitadas 

de sol.

Agosto

Caminhos sintáticos

 

O poeta,

sem querer,

ensina 

o caminho 

de uma obra-prima:

andar

entre o nunca

e o sempre

ser tão rico

e tão simples

e sem afetação.

Fazer-se necessário

como uma preposição.

O sonho mais alto

desse sujeito 

é ser verbo de ligação.

Assentamentos

Cravar logo a crase

em qualquer lugar 

dessa oração

Entender o acento

grave

e a gravidade 

da situação.

Compreender

a dor aguda

pode ser complexo

Mas aceitar

que tudo passa

é mais simples 

que um circunflexo.

Vistas, vindas, idas

Quando eu a via,

eu começava a existir -

É que havia em mim

um estar no mundo,

um existir do verbo haver

Quando vinha,

eu a via -

e todo dia,

quando estava 

por vir,

eu esperava

pra ver.

E quando eu for,

ainda não sei

se vou, do verbo ir;

ou se 

serei, do verbo  ser.